Os caminhos labirínticos que a série
O Paraíso e a Serpente (Netflix) faz pelo tempo e pelo espaço, num zigue-zague entre momentos e contextos corre o risco de perder os espectadores desatentos, mas apesar de render algumas críticas avessas, o diretor
Tom Shankland amarra bem os fragmentos temporais, com um uso criativo da reencenação (reenactment) de uma história reconstituída em flashes. Pretendo me deter na relação entre o real e o ficcional da contação de histórias.
O conceito de reencenação, tal como usado por
Katie King
em
Networked Reenactments (2011), surge como tática de guerra, como uma encenação que ensaia o que fará ou faria o exército inimigo. Esta ideia tem desdobramentos nas mais diversas “comunidades de práticas”, tendo, portanto, diferentes funções, mas todas envolvem algum tipo de jogo, de confabulação. Ela demonstra como as produções televisivas recorrem à reencenação em documentários e na interpretação de papéis históricos, sempre reconstituindo, com maior ou menor coerência e exatidão, modos de vida em outros tempos.
Para King, “atividades de reencenação mobilizam diferentes afetos e sensações”
(King 2011) que serão interpretados sob o crivo de “universos de referência [no processo de] cocriação que podemos chamar de ‘transdisciplinar’.” Transdisciplinar na medida que uma produção fílmica conjura vários campos e processos, da pesquisa historiográfica e biográfica até o tratamento de cor, passando pelo roteiro, pela interpretação, pela seleção das trilhas, etc. Há que se voltar no tempo para buscar essas referências para recriar a história com atenção aos minuciosos “grãos de detalhe” que sinalizam e ambientam o período do filme. (idem) Tal é a atenção para a estética, a linguagem, a trilha, e a moda dos anos 1970, que cada “grão de detalhe” nos transporta para o universo paradisíaco e perigoso de Sobhraj.
A série reconstitui a história de
Charles Sobhraj, um psicopata e estelionatário nascido no Vietnã, filho de mãe vietnamita e pai indiano, que assassina jovens que se aventuram pela conhecida “trilha hippie”, percurso que atraía milhares de jovens mochileiros entre as décadas de 1950 e 1970, em sua maioria europeus e estadunidenses, da Europa ao Sul da Ásia, passando pelo Irã, Afeganistão, Paquistão, Índia e Nepal, terminando em Bangkok, precisamente no covil da serpente desta história.
Sobhraj ficou conhecido como “Maníaco do Biquini”, pois o corpo de uma de suas primeiras vítimas, Teresa Knowlton, foi encontrado afogado de biquíni numa praia. Ele atrai suas vítimas para os recintos de seu casarão na zona nobre de Bangkok, onde o clima festivo torna o ambiente atrativo para jovens e é fácil envenená-los. Quando lhe convém, ele e seu comparsa
Ajay Chowdhury dão cabo de seus corpos na calada da noite, com a desculpa de levá-los a continuar a noitada ou ir ao hospital, para não atrair a atenção dos demais hóspedes. Para tudo há uma desculpa na ponta da língua, de modo que alguns sinais de alerta passem despercebidos até que a verdade se torna demasiado óbvia.
O filme seriado joga com o engano através de saltos na linha do tempo, colocando o espectador numa posição de onisciente (que a tudo vê) e testemunha do processo de tomada de consciência dos personagens. Como, por exemplo, seu hóspede cativo, o francês Dominique Renelleau, para quem a ficha cai quando Coco, o macaco que vive na casa cai duro após tomar uma vitamina envenenada que teria sido servida a ele.
O eixo central da narrativa reencenada é o processo investigativo do diplomata holandês,
Herman Knipperberg, que tem início no segundo episódio, quando ele conversa sobre o desaparecimento de um casal de jovens holandeses com seus colegas diplomatas no bar de um cassino. Pouco a pouco a tensão se escala, no que ele vai montando um quebra-cabeças que aponta para Sobhraj. Mas não basta saber, é preciso provar, o que se torna bastante espinhoso, pois além de o criminoso ter esquemas, o governo e a polícia da Tailândia não têm o menor interesse em levar à frente as investigações com receio de que isso gere publicidade negativa e afaste os turistas da região.
Os crimes não se limitam a Bankok: Sobhraj assume as identidades de suas vítimas apossando-se de seus passaportes, substituindo as fotografias das vítimas pelas dele e de sua companheira, a franco-canadense Marie-Andrée Lecrerc, despistando assim os diplomatas, que estão a procura de seus paradeiros. Nas viagens que faz a Hong Kong, Nepal, e Índia, além de contrabandear pedras preciosas, ele torra seu dinheiro nos cassinos e faz novas vítimas, jogando com vidas descartáveis, hospedando-se ora em hotéis suntuosos, ora em muquifos mais escamoteados, fora das vistas da lei. Seu paradeiro é dinâmico, voraz, e com fugas tão engenhosas que parecem pouco críveis.
Como reconstituir uma história absurda da vida numa tela sem que o seu duplo não soe como uma grande farsa?
Este desafio faz com que
Paul Testar, coprodutor do filme que conduz a pesquisa historiográfica, seja extremamente cuidadoso, buscando reproduzir com exatidão a reconstituição dos fatos que sabemos, e dando margem para a dúvida naquilo que, todavia, pode ser questionado. Afinal, até que ponto se pode confiar nas palavras de um psicopata que é conhecido como mentiroso compulsivo? Com efeito, este cinema seriado é resultado de um trabalho investigativo que envolve a escuta de horas de entrevista concedida a
Julie Clarke e seu marido
Richard Neville registradas em fita. Clarke depois escreve o livro Na
Trilha da Serpente. A pesquisa historiográfica envolve uma escuta atenta aos sobreviventes, aos parentes das vítimas e acesso aos arquivos de Knipperberg que eventualmente levam à prisão do assassino. O esforço, segundo o
mise-en scène, tem a ver com um cuidado para que o filme seja crível e ao mesmo tempo traga uma sensibilidade para fazer jus às famílias e aos entes queridos das vítimas. Segundo Testar em entrevista ao
Los Angeles Times (LA Times, 2/04/2021), cerca de 80 a 90% da história que aparece na série é autêntica e a escolha por não falar com Sobhraj é deliberada: “Ele constantemente tentava monetizar sua história”.
ESPECTADOR COMO TESTEMUNHA
Os fragmentos temporais com que a história é contada servem para reforçar linhas de continuidade e encadeamentos entre fenômenos que vão escalando entre os anos de 1975 e 1976, e como o diplomata holandês vai de uma suspeita até o levantamento de provas que eventualmente asseguram sua prisão. Enquanto isso o espectador testemunha os crimes seriais desses turistas, como uma tela confidente que nos revela o lado sombrio de uma lua cujo brilho ofusca e ludibria.
Há algo que não dá para ver no cartão postal. Sobhraj sabe da insegurança e do desamparo que esses turistas passam ao viajar por um país onde não falam a língua. Ele entende a vontade dessa juventude de escapar à previsibilidade de um turismo comercial feito “pra gringo ver” e ter uma experiência genuína de acolhimento, aventura e transgressão. Ele oferece a esses jovens o paraíso perdido que eles estão a buscar, abrindo as portas de sua casa com piscina, álcool e
tutti quanti, instaurando um clima permanente de festa, de aparente liberdade, e a sensação de segurança por estarem de certa forma cuidados, mesmo quando “doentes” (o que acontece de forma induzida, por doses de veneno). Qualquer jovem é suscetível a cair nos encantos de Sobhraj, e sua bela aparência, assim como de sua companheira Marie-Andrée, que os acolhem num lugar desejável a quem não sabe de antemão da encrenca que está se metendo.
A escolha dos hippies como vítimas é evidente: são pessoas que não chamam tanta atenção quando visivelmente atordoados, passam mal ou desmaiam em espaços públicos, sendo este um comportamento já esperado desses jovens devido ao consumo de álcool e entorpecentes atrelado ao estigma.
Sohbraj se aproveita do estigma em torno desses jovens para que os crimes passem despercebidos, afinal, são considerados delinquentes, arruaceiros, maconheiros, vagabundos. A ingenuidade desses mochileiros que seguem a trilha hippie em busca de experiências místicas transcendentais e de aventuras interculturais os torna suscetíveis a serem ludibriados por quem tenha uma lábia em sintonia com suas afinidades.
Com seu olhar fixo e atento a detalhes, Sobhraj é ligeiro em ler as pessoas. Convenhamos, aquilo que se pretende alternativo já é constituído como tendência de época, modismo, manjado e comodificado nesses destinos turísticos. É evidente que Sobhraj não gosta dos hippies, movido por ideias anticolonialistas que fundamentam politicamente uma desconfiança em torno da ambiguidade desses sujeitos, que expressam simpatia às culturas orientais, mas ao mesmo tempo gozam dos mesmos privilégios que os turistas tradicionais. Para esses “turistas”, que não gostam de ser chamados assim por seu modo alternativo de viajar, aventurar-se por terras que até recentemente foram colônia tem algo da mesma curiosidade orientalista que trata os locais como “exóticos”, com as mesmas titilações fetichizadas de seus parentescos colonizadores.
A série mostra o assassino reclamando de racismo, de um gaze que subestima pessoas racializadas com a soberba de quem se entende mais civilizado do que o outro. Nesse sentido, a serpente aprende os maneirismos e a estética de suas presas e se camufla, fazendo as vezes de um personagem entre mundos, uma espécie de intercessor que transita entre os dois hemisférios, entre dois universos de referência, que se encontram numa mesma Bangkok. Quem não quer um guia assim?